Javali, o cavalo de Troia da caça no Brasil 

Javali abatido por arma de fogo
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No Brasil, existem duas espécies nativas de porcos selvagens, o caititu (Dicotyles tajacu) e o queixada (Tayassu pecari). Mas, fazendo uma busca simples no Google, vamos encontrar mais notícias e artigos sobre o javali europeu (Sus scrofa), uma espécie de porco selvagem exótica, do que as 2 espécies nativas do Brasil.

Hoje, podemos, de certa forma, considerar que o javali, espécie não nativa das Américas, é mais conhecido pelos brasileiros, que seus similares da fauna local. Porém, o que ainda não é conhecimento popular em nosso país são os problemas relacionados à legalização da caça deste animal em nosso território.

Como o animal se estabeleceu no Brasil? 

O javali foi introduzido no Brasil na década de 90, com o intuito de produção de carne. Mas infelizmente, de forma proposital ou não, populações livres do animal foram se estabelecendo em áreas naturais do sul do Brasil. 

Existem relatos de invasão de populações de origem de países vizinhos, como Uruguai e Argentina, que introduziram o animal no século XVIII para fomentar a caça e a carne.  Mas sabemos que o maior volume foi de origem interna. 

Uma espécie invasora nociva

Por ser uma espécie exótica, sem predadores naturais, com uma alta taxa de reprodução e uma dieta diversificada, essas características favoreceram a adaptação das populações de javali e de “javaporco” (indivíduos híbridos de porcos doméstico com javali) em diversos ambientes, incluindo florestas, campos agrícolas e pastagem.  

Dessa forma, o javali pode causar uma série de impactos negativos para a biodiversidade local, competindo com espécies nativas por recursos, destruindo a vegetação, plantações e rebanhos de animais pequenos e introduzindo doenças.  

O javali, portanto, é considerado uma espécie nociva, fazendo com que políticas de captura e remoção sejam extremamente necessárias para a proteção da biodiversidade.  

Mas, o estabelecimento desses animais exóticos poderia ter ocorrido de forma diferente. Se sua invasão tivesse um processo natural (sem um “empurrãozinho” humano) e com políticas de contenção mais eficazes. Infelizmente, não foi assim que ocorreu: o javali passou a ser uma espécie visada para a caça esportiva, atividade essa proibida no Brasil.

Equívocos na política de combate à expansão do javali

Em 2002, se iniciou um processo desastroso, com a liberação da caça do javali em certas regiões do Rio Grande do Sul. Não demorou muito para que esta prática fosse proibida, mas este marco aguçou muitos simpatizantes da caça.  

Com a publicação da Instrução Normativa 3, de 31 de janeiro de 2013, que declara a nocividade do animal em território nacional e permite sua caça, se iniciou uma política nacional de controle do javali. No caso, o documento optou por outro nome, “manejo para controle”.  

Desde então, o javali, reconhecido como uma das espécies com maior poder de invasão, teve os maiores índices de expansão territorial no país. Interessante ver que esta distribuição diverge do observado em expansões de outras espécies invasoras, contendo grandes saltos, lacunas de ocorrência e casos bizarros. Um exemplo disso são os relatos de javali em ilhas e até em estados na calha norte do Rio Amazonas, locais com barreiras biogeográficas consideráveis.

Em paralelo, os grupos, canais e a indústria da caça também tiveram seu crescimento exponencial no Brasil. Especificamente a partir do final de 2018, com a Lei nº 13.755, sancionada pelo então presidente Michel Temer em 10 de dezembro de 2018. 

Essa lei alterou o Estatuto de Controle de Armas de Fogo (Lei nº 10.826/2003) para permitir a caça de javali em território nacional. Entre os anos 2019 e 2022 os chamados CACs, (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) credencial que permite controlar o animal (“controlar = caçar”) tiveram uma expansão astronômica: de 117.467 em 2018 para 783.385 em 2022. 

Interessante observar que a ascensão pronunciada dos dados de registros de javalis por município e autorizações e registros de caça apresentam um comportamento similar. Ambos de aumento ao invés de diminuição.

Mas, qual foi o grande equívoco no processo, além, claro, de armar a população sem muito critério? 

A gestão pública do Brasil optou por transferir a solução do problema para a mão do cidadão comum, hoje classificados como CACs. Essa estratégia abriu as portas para uma sequência de danos à vida animal e até mesmo para a sociedade com um todo.  

Em especial, vemos que, de 2013 até hoje, o problema só aumentou de forma exponencial.  

Sim, a gestão de uma espécie exótica como o javali é complexa. Mas algumas medidas poderiam ter sido priorizadas para tornar a sua invasão mais controlada, com menos impactos para o bem-estar animal e as espécies nativas. Como mais critérios na liberação de ações de manejo, maior fiscalização e principalmente a priorização de ações de manejo efetivas (e não de “atividade de lazer”, como a caça esportiva).

Uso de cães na caça do javali  

Javali caçado por cães
Outro grande problema relacionado à caça de javali é a utilização de cães em sua maioria, prática extremamente nociva para o bem-estar animal e para a biodiversidade.

A liberação do uso de cães, prática antiga e muito comum em diferentes tipos de caça, é, acima de tudo, outro grande erro. Ela gera sofrimento extremo para os cães e para o animal caçado.

Primeiramente, a liberação dessa prática cria um sistema de exploração de cães para essa finalidade. Criadores clandestinos e legalizados se estabeleceram e estão em expansão em todo o território nacional. 

Além disso, “treinamentos não convencionais”, cruéis e com extremo sofrimento são empregados a estes animais, para incitar a agressividade. Basta fazer uma busca nas redes que vamos encontrar diversos casos de maus-tratos e condições insalubres.

Isso vai na contramão do que as normas de controle do javali dizem, sendo proibido gerar maus-tratos aos animais. Não existe bem-estar, quando colocamos dois animais para duelar e se matar. Muitos cachorros morrem, são feridos ou largados para morrer em campo, sem contar as dezenas que se perdem em zonas de mata nativa durante a caça, gerando outros problemas.


Para piorar, estudos recentes apontam os riscos de transmissão de doenças, pois os cães passam a ser vetores de doenças para a natureza e para humanos (Kmetiuk et al 2023).  

Importante lembrar que o cão de caça também caça outros animais, não se restringindo ao javali. Então, durante uma caçada de javali, diversas outras espécies nativas correm o risco de serem atacadas e mortas. 

Como se já não bastassem todos estes argumentos, a utilização de cães tem efeito direto na expansão de território do invasor. Há a tendência de dispersar as varas de javali, uma vez que os indivíduos fogem para áreas vizinhas, estradas e outros, ampliando o problema.

Priorizar a caça não é o caminho 

Existem diferentes métodos de manejo e controle de espécies. Especificamente para o javali, existe a utilização de armadilhas, contenção química, além do abate por arma de fogo, etc. 

No geral, o método que apresenta melhor efetividade, pensando na eliminação de espécies que andam em bando, são as armadilhas. Com elas, é possível pegar a vara (grupo) como um todo, ou deixar apenas alguns poucos indivíduos remanescentes. Manter a caça, especialmente com uso de cães, como medida principal não trará nenhum resultado positivo.  

Diferentes artigos científicos publicados confluem para a caça esportiva como um método ineficaz. Nos EUA, apenas dispersou a espécie livre e promoveu fazendas de caça, com participação ativa dos caçadores (Smith et al 2023; McLean et al 2021; Grady et al 2019).  

No artigo publicado Journal of Environmental Management em 2023 intitulado “Cultural and regulatory factors influence distribution and trajectory of invasive species in the United States: A wild pig case study” Fatores culturais e regulatórios influenciam a distribuição e a trajetória de espécies invasoras nos Estados Unidos: um estudo de caso do javali,  os autores concluem: “Nossos resultados sugerem que a presença de javalis selvagens em vários estados foi influenciada por reservas de caça e pela venda de oportunidades de caça. Em estados ocupados, a extensão espacial de javalis selvagens também foi associada à venda de oportunidades de caça e a uma cultura de caça desses animais. Por fim, a trajetória de ocupação espacial de javalis selvagens em nível estadual foi positivamente influenciada pela venda de oportunidades de caça e negativamente influenciada por políticas de transporte…”  

Embora não existam estudos para o Brasil, os dados da distribuição do javali, o crescente registro de CACs e as inúmeras denúncias de criação de comércio de caça, mostram exatamente o mesmo processo citado nas publicações científicas.  

Novo plano nacional de ação do Javali  

Em 2023, se iniciou a elaboração do 2° Ciclo do Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali (Sus scrofa).  Este conjunto de propostas e discussões tem como objetivo traçar novas metas e estabelecer as melhores estratégias para que o Brasil consiga conter o avanço e tentar erradicar o javali e seus impactos, assim como também rever ações que não atingiram resultados esperados.  

O Instituto Ampara Animal fez parte das reuniões realizadas em Brasília, que contaram com a participação de diferentes agentes de governos municipais, estaduais e federais, representantes do agronegócio, instituições e órgãos ambientais como IBAMA, MAPA e ICMbio.  

Nossa atuação, além de contribuir de forma ampla, teve como objetivo fortalecer as estratégias que priorizam o bem-estar dos animais. Estratégias que, preferencialmente, excluam o uso de cães, que tornem ações de manejo mais profissionais. Como exemplo, a proibição da caça por diversão e a priorização de ações com métodos éticos e eficientes, como armadilhas. 

Acreditamos que estas alterações têm um papel fundamental para melhorar a efetividade das ações de manejo do javali e para melhorar os padrões de bem-estar animal de cães, fauna silvestre e para o próprio javali.  É preciso sim combater a invasão de javalis, mas esse combate precisa ser efetivo e responsável.

No cenário atual global e a partir do conhecimento científico, não faz mais sentido apenas 1,6% das ações de manejo no Brasil utilizarem armadilhas. Há ainda mais incongruência em manter o uso de cães em pelo menos 63% das ações de manejo (dados apresentados e extraídos do SIMAF). 

Considerações finais  

Práticas e estratégias como a caça esportiva de javalis, a utilização de cães e armas de fogo demonstram, de forma clara, sua ineficiência e influência negativa para a fauna brasileira e, principalmente para a efetividade das ações de controle. 

As Instruções Normativas 03/2013 e 02/2019 do IBAMA, que abordam a autorização para o controle desses animais por particulares, utilizando diversas técnicas, como armas de fogo, armas brancas e armadilhas, além de cães de caça devem ser revisitadas e questionadas. 

Promover a caça e o uso de cães tem efeitos adversos para a biodiversidade local, pois muitas vezes, resulta na caça de outras espécies silvestres. Isso coloca em risco a fauna nativa, podendo desequilibrar os ecossistemas e afetar negativamente as populações de animais nativos.  

Além disso, essa prática cruel abusa do bem-estar animal, fomentando a criação ilegal de cães e principalmente submetendo esses animais a condições degradantes, violentas e de grande risco para sua saúde. 

Dessa forma, é fundamental que sejam adotadas medidas cautelosas e regulamentações adequadas. Visando, portanto, garantir que o controle de javalis não prejudique a fauna nativa e comprometa o bem-estar animal. É importante que ações sejam realizadas de forma organizada, com o objetivo claro de manejar e erradicar a espécies e sem a intenção de diversão, camuflada de manejo. 

Não podemos mais esperar sentados para mudar as estratégias e políticas públicas, visando a segurança da nossa biodiversidade, da população e dos produtores rurais.   

Texto de autoria do Gerente de Projetos da Ampara Silvestre, o biólogo Maurício Forlani.

Referências bibliográficas

Kmetiuk et al 2023. One Health at gunpoint: Impact of wild boars as exotic species in Brazil – A review. One Health 17 (2023). https://doi.org/10.1016/j.onehlt.2023.100577 

McLean et al 2021. Understanding tolerance for an invasive species: An investigation of hunter acceptance capacity for wild pigs (Sus scrofa) in Texas Journal of Environmental Management 285 (2021) 112143. doi.org/10.1016/j.jenvman.2021.112143  

Grady et al 2019. Assessing public support for restrictions on transport of invasive wild pigs (Sus scrofa) in the United States. Journal of Environmental Management 237 (2019) 488–494. doi.org/10.1016/j.jenvman.2019.02.107. 

Smith et al 2023. Cultural and regulatory factors influence distribution and trajectory of invasive species in the United States: A wild pig case study. Journal of Environmental Management (338 (2023) 117742); doi.org/10.1016/j.jenvman.2023.117742. 

Notícias

https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2020/10/28/mais-de-30-caes-resgatados-em-situacao-de-maus-tratos-eram-usados-para-cacar-javalis-diz-dibea.ghtml

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/04/17/grupo-usava-porcos-vivos-para-treinar-caes-de-caca-na-regiao-metropolitana-de-porto-alegre-diz-policia.ghtml

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